A Psicologia do Terror nos Video-Games


Muitas vezes o melhor gênero para se desenvolver um enredo dramático e psicológico é o terror. Até porque nada mais aterrorizante e destrutivo em nossa alma que um trauma não superado.
Seja qual for a ferida que carregamos, vivemos constantemente em nosso interior o terror que essa dor nos causa, e se todas elas se materializassem ao nosso redor, viveríamos um verdadeiro inferno literalmente.

Dessa forma, analisando isso nos jogos, me lembro de Rule of Rose, lançado para PS2 em 2006, onde se narra a história de Jennifer, uma garota que cresceu em um orfanato após perder os pais, e na adolescência acaba voltando para esse local e revivendo todo o seu passado.
O enredo se centra no trauma de Jennifer e na insegurança dela em relembrar a sua infância, em lidar com as dores que viveu naquele lugar, e como isso afetou a sua personalidade.
Rule of Rose mostra que o maior pesadelo que podemos enfrentar está em nossa mente, em nossos pensamentos, as inseguranças de um passado não superado, pois todas as assombrações que ela encontra naquele orfanato são criados em sua cabeça, nada daquilo aconteceu de fato no tempo presente, é apenas o medo que fez gerar ao seu redor todo aquele cenário de horror, onde as suas feridas são materializadas. Algumas criaturas que ela encontra durante o jogo são representações do bloqueio mental que ela criou para se esquecer daquela época traumatizante, e conforme elas são derrotadas as suas lembranças vão retornando novamente. Uma batalha psicológica, travada no interior da pessoa, materializada na jogabilidade do jogo.
É claro que sempre que voltamos para um lugar importante em nossa vida, que tenha nos marcado de forma positiva ou negativa, relembramos com detalhes cada fato que passamos ali, isso cria em nós muitos sentimentos ao mesmo tempo, felicidade pelo que vivemos e também arrependimento de certas situações.

Já visitei uma vez a casa em que fui criado, e é inevitável as lembranças, você faz uma viagem histórica de sua vida e se recorda de coisas que nem mais se lembrava. É como se você realmente estivesse vendo as pessoas que viviam naquela casa, ouvindo as suas vozes. Felizmente as minhas lembranças foram boas.
É essa viagem ao passado que Jennifer vive, mas no caso dela é algo que ela gostaria de esquecer para sempre. As outras crianças que aparecem no decorrer do jogo, por mais que todas demonstrem uma atitude de crueldade, também são todas vítimas de seu passado, cada uma com uma dor sufocante no coração, e isso misturado com a inocência e egoísmo de querer amenizar a prisão emocional demonstrando autoridade sobre os outros, se autodestroem. Assim como em Silent Hill, todos os personagens vivem o seu inferno pessoal, escondendo um passado amargurante.

Personagens do jogo Rule of Rose.


Mas qual outro gênero seria mais adequado para se contar a história de Jennifer que o terror?
Na verdade um trauma com essa gravidade nada mais é que um insuportável horror dentro de nós, e isso foi apenas objetificado literalmente em um jogo, o gênero não foi uma escolha dos desenvolvedores, ele veio naturalmente com a concepção do enredo, com os sentimentos de Jennifer.
Essa carga dramática presente em muitas histórias de terror também podem ser vistas em filmes como O Sexto Sentido, dirigido e escrito por Shyamalan, fica evidente que esse gênero pode ir muito mais além que apenas sangue na tela, que pode existir uma profundidade nesses enredos. Sempre me identifiquei com Shyamalan pela sua forma de fazer roteiros, de um terror interior, subjetivo, psicológico, nascido de um trauma, assim como aconteceu com o filme Babadook dirigido pela Jennifer Kent, e o conto O Retrato Oval de Edgar Allan Poe.

Silent Hill 2 lançado em 2001 para PS2, assim como Rule of Rose, tem o sofrimento humano como o centro de sua história, o pesadelo que esse jogo transmite se torna ainda maior quando você vive pessoalmente a perda de alguém que você ama, dessa forma você entende o peso de cada expressão transmitida por James, o protagonista do jogo, que sofre após a morte de sua esposa.
Você acaba se vendo como o próprio personagem, sentindo as mesmas dores, o mesmo inferno.
Mais uma vez o gênero terror se encaixando perfeitamente para transmitir uma sensação de angustia que esse tipo de enredo exige, o jogo materializa a dor vivida por ele em cenários de agonia, a mesma agonia que o seu coração tenta suportar, e no final a culpa se torna mais forte que ele.
Cada personagem em Silent Hill 2 carrega um sofrimento profundo pelos atos que fizeram, a grande dor na verdade não é nem o acontecimento em si, e sim a dificuldade de se perdoar, mesmo quando você não é culpado pelo que ocorreu. Pessoas que nutrem uma culpa dentro de si mesmas acabam não conseguindo ser felizes, vivem inseguras, se auto-vitimizam, principalmente se isso acontece na infância e adolescência.
Isso gera um estrago na vida pessoal, criando um trauma que se não for tratado rapidamente, irão se destruindo lentamente, deixa a pessoa frágil pra lidar com os problemas da vida, assim como aconteceu com Jennifer.

Por Silent Hill 2 falar de sofrimentos tão comuns em nosso cotidiano, não é difícil que alguém se identifique com algum personagem ou pelo menos conhece alguém que vive com os mesmos problemas, e obviamente a alma de quem carrega uma dor profunda acaba se tornando um verdadeiro cenário de terror no interior da alma.
A dor com a qual Angela convive, assim como Eddie, são representações de culpas extremamente presentes em nosso mundo, como o abuso ou a dor de perder quem amamos, e quando não há nenhum principio de significado pra existir na pessoa, e o baque se torna insuportável, o suicídio acaba sendo a única opção.
Silent Hill é apenas uma cidade, mas o sofrimento dos personagens os fazem enxergá-la como um inferno, mas o verdadeiro inferno se passa na mente de cada um deles, onde o verdadeiro terror acontece, todos nós temos uma Silent hill dentro da gente, as vezes nos culpando por erros do passado, outras vezes nos perdoando por termos aceito a realidade e aprendido a conviver com ela.







O sofrimento muitas vezes nos faz criar ilusões, nos tornarmos algo que não somos, queremos apagar de nossas lembranças os momentos que nos traumatizaram por não sabermos lidar com eles.
Na verdade, no mais íntimo de nosso ser, grande parte de nós vivemos uma fantasia, criando assim nosso próprio mundo de sonho, castelo na areia, e qualquer sopro da existência que venha contra nós, percebemos a fragilidade que somos e não aceitamos ela. Ou muitas vezes dizemos que estamos fortes, mas é só uma maquiagem para nossa fraqueza.

Richard Grady, pai de Travis em Silent hill: Origins, assim como James, também não conseguiu lidar com a perda de sua esposa. Dois sofrimentos parecidos com consequências iguais, o suicídio.
Saber que Helen, sua mulher, tentou matar seu filho e se matar ao mesmo tempo, se transformou em um peso muito grande para ele lidar. Após Helen ser internada o seu estado foi apenas piorando, a cada visita que fazia a sua esposa, mais Richard percebia que havia perdido ela para sempre, que não poderia reverter a situação, e ainda ter que mentir para seu filho sobre a morte de sua mãe, para assim evitar o encontro entre os dois.
A conclusão de saber que você perdeu a pessoa que você ama, que não poderá mais estar ao lado dela, e ainda carregar a culpa por isso, no caso de James e Richard, traz um sofrimento muito grande, é como se sua vida não tivesse mais sentido, é preciso uma força interior muito grande pra continuar vivendo com a sensação de vazio, de que estamos incompletos.
O mesmo impacto que teve Travis e Angela, onde a pessoa que deveriam amar, que eles mais depositariam confiança, se transformam em seu pior inimigo, em um perigo para sua vida.
Dessa forma, enquanto Angela cria um ódio e medo pelos homens, por ter sido abusada pelo pai e irmão, Travis também cresce em uma indiferença pelas mulheres, por quase ter sido morto por sua mãe. Uma vida literalmente de terror e sofrimento, artisticamente colocada em um jogo.

A música, assim como uma história, também serve para exteriorizar nossos sentimentos, Akira Yamaoka, compositor da série Silent Hill, soube passar perfeitamente essas dores em melodia.
Em Silent Hill 4 temos a canção Room of Angel, uma música que descreve com detalhes sobre o interior de Walter Sullivan, o "vilão" do jogo. Mas qual a semente que fez brotar a crueldade em Walter Sullivan? Não é comum um antagonista ser tão explorado como ele foi em um jogo desse gênero, poderia ser apenas mais um vilão, sem motivações convincentes, mas Silent Hill 4 mostrou um lado não muito explorado na maioria das narrativas, nos fazendo enfrentar os traumas e medos vividos pelo "vilão', e assim conhecemos os motivos para ele agir como psicopata. E no final percebermos que ele foi apenas mais uma vítima da crueldade de nosso mundo, buscando por um amor materno que ele nunca teve, por consequência disso se transformando em um assassino. Por mais cruel que alguém possa ser pelas circunstâncias da vida, na maioria das vezes sempre haverá um motivo, digo por experiência de minha vida, erros cometidos por mim mesmo, em que muitas vezes me tornei vilão da minha própria existência e feri aqueles que não mereciam.
Na adolescência eu li no encarte de um CD de rap do cantor Dexter, que dizia: "Por trás de um ladrão com armas na mão, existe um ser humano que precisa de uma chance". Nada mais verdadeiro que isso.



Alguns dos enredos desses jogos que se focam no terror psicológico nem sempre os vilões são realmente vilões, mas foram um dilúvio de situações que os transformaram no que são, ou melhor ainda, as suas atitudes não refletem a fonte de seus verdadeiros desejos, mas isso acaba sendo a única alternativa que encontram para conseguir o que querem.
Haunting Ground, lançado para PS2 em 2005, temos como vilões os personagens Debilitas e Daniella, onde cada um, com motivações diferentes, tentam capturar a protagonista Fiona, que se encontra perdida em um castelo.
Debilitas nos é apresentado como o primeiro vilão do jogo, mas ele é claramente mostrado como alguém que não possui consciência de suas ações, ele apenas enxerga Fiona como mais uma de suas bonecas, não tem a intenção de machucá-la, se tornou "vilão" pela circunstância. Da mesma forma Daniella, criada desde bebê por Lorenzo Belli, morador do castelo onde o jogo se passa. Devido a lavagem cerebral que sofreu de Lorenzo, Daniella é uma mulher fria e sem sentimentos, ela não consegue sentir dor e nenhum tipo de prazer, é vazia emocionalmente, e seu único desejo é poder se tornar uma mulher normal, completa, poder provar o simples sabor de um alimento até a vontade de saber como é sentir dor.

Por ter sido vítima de Lorenzo, e se considerar incompleta, Daniella inveja Fiona, carrega um ódio pelas mulheres devido a incapacidade de gerar um filho, de ter uma família, e busca capturar o Azoth dentro de Fiona, um elemento da alquimia com o qual ela acredita que poderá se tornar uma mulher de verdade, completa. Daniella apenas quer se tornar uma humana, sentir emoções, e por esse sonho que se tornou uma obsessão, ela acaba enlouquecendo. Não muito diferente de nossa vida, somos movidos por desejos egoístas, pisamos nas pessoas sem pensarmos nas consequências, no final somos todos inimigos nesse mundo e consequentemente vítimas de nós mesmos.

Daniella e Debilitas do jogo Haunting Ground.



O sofrimento, seja ele qual for, caso não seja superado pode nos destruir por dentro, em alguns casos nos transformando em quem nunca pensaríamos ser.
Nos levando ao suicídio como James, que não se perdoou por ter matado a própria esposa, e até mesmo em assassinos como Walter Sullivan, que apesar de toda a brutalidade que cometeu, no fundo ele só queria ter a presença da mãe, um amor materno que ele nunca sentiu na vida.

Comentários

  1. Senhor do céu........ matéria suprema essa! Além de escrever ótimos contos do mesmo universo dramático, você escreve muito bem também quando se trata de um conteúdo mais complexo. Concordo com as coisas que você falou Lucas, nossa Silent Hill dentro de cada um... incrível mesmo. Como você bem sabe, carrego uns infernos dentro de mim que por mais que se apaguem, sempre voltam a queimar e gerar cinzas... sempre... Parabéns!!

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