A Solidão em The Screen at Kamchanod


No terror asiático sobrenatural, muitas vezes as assombrações são apenas um elemento que aciona as verdadeiras intenções do filme.
Por exemplo, se você pegar filmes como Ringu (O Chamado) e Ju-on (O Grito), externamente são apenas filmes de terror com a única intenção de dar sustos. E de fato eles tem essa pretensão, mas dentro dessa superfície existem muitas outras camadas.
Não apenas Ringu e Ju-on, mas muitos filmes como Shutter, Bunshinsaba, Apartament, nos apresentam, além de sua proposta de assustar, que todo gênero de terror possuí, uma razão para o "assustador" acontecer, uma razão humana, sobre conflitos humanos, na maioria das vezes personificado em fantasmas de mulheres.
A sempre um tema por traz das assombrações, um motivo para as ações impiedosas desses fantasmas.
Isso é algo que ocorre bastante no terror asiático, não apenas em filmes mas também nos jogos eletrônicos, como por exemplo em Silent Hill e Rule of Rose.
Silent Hill 4 por exemplo, possuí um vilão chamado Walter Sullivan, que após ser abandonado pelos país no apartamento onde vivia, cresceu com o desejo de encontrar sua mãe sofrendo pela ausência dela, e fez de seu apartamento a mãe que ele tanto queria de volta, impedindo que outros entrassem nele.
Para isso Walter precisou fazer um ritual chamado "21 sacramentos", no qual consiste em matar 21 pessoas, para que assim pudesse realizar seu desejo.
Podemos olhar para ele apenas como um vilão maldoso, mas também como uma vítima, consequência causada pelo sofrimento que viveu devido ao abandono.
Por mais que seus atos sejam terríveis, fomos nós, "humanidade" que o tornamos assim, grande parte do sofrimento humano é gerado pelas pessoas ao nosso redor, uma traição que não aceitamos, a inveja que gera ódio, uma dívida não paga, todo mau que se faz a alguém, muitas delas devolvem na mesma medida.
No caso de Walter, era apenas uma criança, que cresceu com esse vazio materno, e toda crueldade que fez, no fundo, era apenas para ter o amor de sua mãe de volta.

Vemos em muitos dos espíritos presentes nos filmes de terror asiáticos o tema da vingança, além dos atos cruéis dessas assombrações, existem mulheres que foram vítimas de abusos, mortas injustamente, traídas ou abandonadas, e toda dor misturada com o desejo de punição, faz com que seus sentimentos sejam personificados nos fantasmas, como Sadako e Kayako, que são os exemplos mais famosos.
Todas elas, apesar de suas ações, são apenas mulheres em sofrimento, que carregam mesmo após a morte, toda a dor que enfrentaram enquanto vivas, e que agora buscam vingança.

The Screen at Kamchanod é um filme tailandês de terror psicológico lançado em 2007.
A história gira em torno de um misterioso filme exibido na floresta Kamchanod em 1987, dois projecionistas foram contratados por um desconhecido, para exibirem o filme nesse local ao ar livre.
Mas quando chega o dia da exibição, estranhamente ninguém aparece, e como o dinheiro já havia sido pago, os dois projecionistas, Pradrab e Chin, decidem rodar o filme mesmo assim.
Após algum tempo, misteriosamente começam a surgir diversas pessoas do nada, saindo de dentro da floresta, e se assentando em frente a tela para assistirem. Assim que o filme termina, da mesma forma desaparecem de repente, e a partir disso, os dois projecionistas começam a ser atormentados por fantasmas, e assim, vinte anos depois, quando o jovem Dr. Yut fica sabendo dessa história, decide investigar com a ajuda de sua esposa chamada Aon, e dois jornalistas, Ji e Pun, e um rapaz de nome Roj.
Após algumas investigações, eles conseguem encontrar um dos projecionistas, Chin, já bastante debilitado em um hospital, e descobrem através dele o local que o filme estava guardado.
Com a ajuda de um outro projecionista, eles decidem colocar o filme para rodar em um teatro abandonado. Assim feito, ao terminar as filmagens, todos começam a ser seguidos por estranhas aparições, e tentam encontrar uma forma para isso terminar.

Como dito no início, mais uma vez o terror presente no filme, vai muito mais além das assombrações, o diretor as usa para desenvolver o foco principal do filme, os personagens, seus dramas pessoais.
A narrativa é toda centrada nesses cinco personagens, nos mostrando o envolvimento deles, cada vez mais intenso, os deixando aos pucos perturbados com as misteriosas aparições.
A atmosfera do filme é bastante solitária, poucos personagens aparecem, é como se a cidade só fosse habitada por eles, os ambientes em sua maioria são vazios, perturbadores, da mesma forma como o interior dos personagens vão se tornando cada vez mais sombrios.
A solidão do ambiente reproduz a mesma solidão e medo de cada personagem.
Em uma parte do filme Aon diz a seu marido Yut a seguinte frase: "Você percebeu que estamos vendo menos pessoas vivas e mais fantasmas?"

Aon e Roj
Desses cinco personagens, dois ganham destaque, Aon, a esposa do Dr Yut, e o jovem solitário Roj.
Logo no começo do filme, é mostrada Aon em uma estação de trem vazia a noite, caminhando lentamente até chegar próximo a linha, planejando se jogar assim que algum trem aparecer.
De repente Roj se aproxima e percebe a intenção da mulher, e assim que o trem começa a se aproximar, no momento que a mulher ia pular, Roj a agarra e a puxa para traz.
Esse é o primeiro contato entre os personagens. Sem dizerem uma palavra, ambos seguem seu caminho.
O filme possuí poucos diálogos, ele é muito mais contemplativo do que explicativo, a maioria das cenas é o expectador que precisa interpretar.
Até esse momento não sabemos a razão da tristeza de Aon, essa é uma característica do filme, não dar explicações logo de início e sim aos poucos, isso é algo que ajuda a manter o mistério da história.
No decorrer do filme nos é dado algumas pistas revelando que o relacionamento de Aon e Yuti não andava bem, existem conflitos entre eles, como por exemplo quando mostra Yuti tirando um curativo do rosto de Aon, nos faz perguntar de onde ela teve aquela ferida, são pistas sutis que se encaixam no final. Mas até esse momento, ainda não sabemos o motivo da distância entre eles.
Aon é uma personagem ao mesmo tempo misteriosa, como também triste, todo o filme ela está com o semblante vazio, sem esperança.
E perto do final é mostrado que Yuti abusava dela fisicamente, a ameaçava sempre que Aon dizia sobre separação, ela não aguentava mais estar junto de Yuti, queria sair daquela relação abusiva.
Aon se via aprisionada ao seu lado, e via no suicídio a única salvação para se livrar dele, acabar com sua dor, como é dito por ela mesma enquanto está conversando sozinha com Roj: "A única forma de eu escapar disso é morrer".
As agressões do marido e sua obsessão pela busca em descobrir a verdade sobre o misterioso filme, a deixava se sentindo cada vez mais abandonada, lhe fazendo crescer seu desejo de morte.
Mas uma esperança nasceu dentro dela, uma pequena luz brilhou quando ela viu Roj entrar no escritório de Yuti atrás dele, logo os dois se reconheceram e lembraram do dia de sua tentativa de suicídio na estação de trem.

Sofrendo nas mãos do esposo, ela viu em Roj alguma esperança, talvez uma oportunidade de que poderia sair daquele relacionamento e começar algo diferente, compartilhar sua vida com outra apessoa. Não vejo Aon enxergando em Roj seu outro marido, não sinto que Aon estava apaixonada por ele, mas ele representava uma esperança, um conforto, era como se ele fosse o símbolo de que teria chance de começar tudo do início, uma nova vida com outra pessoa, mesmo Roj não sendo especificamente essa pessoa, mas ele significava isso, Aon via essa luz nele.
Roj era o oposto de Yuti, demonstrava preocupação por ela, não era agressivo, tinha uma certa inocência devido a sua timidez, características totalmente diferentes que ela via no marido.
Tudo isso despertava nela uma esperança, crendo que deve haver outros homens como Roj, que demonstrassem preocupação e conforto, e assim abandonar de vez o sofrimento com Yuti.
Mas infelizmente sua esperança foi completamente destruída ao descobrir as verdadeiras intenções de Roj.

Morando de favor em uma pequena loja, Roj é viciado em drogas, desde o começo demonstrou sentimentos de solidão, um vazio de significado dentro dele, uma busca por identidade, dá para perceber isso em seu semblante, e por ser tímido, Roj não demonstrava muita emoção, mas ao mesmo tempo fica perceptível que algo dentro dele o incomodava.
E assim ele conhece Aon, e também vê nela uma oportunidade, só que diferente da visão de Aon em relação a ele, que era carregada de esperança de recomeço, Roj tinha outros sentimentos, era uma visão de posse, não sabendo como controlar suas emoções, lidando com sensações que ele nunca havia sentido até então, essa paixão que despertou pelo contato com Aon o fez se transformar em uma ameaça a vida de Aon, aquele que ela achava que seria a sua proteção.
Após uma visita a loja em que Roj morava, Aon desabafa sobre o sofrido relacionamento que estava tendo com Yut, e vendo nesse momento uma oportunidade de se aproximar da moça, Roj não se controla e começa a passar a mão no corpo de Aon e consequentemente a estupra.
O estupro na verdade foi o ápice das crescentes emoções que ele foi acumulando ao longo da história, no começo do filme não vemos um Roj ruim, pervertido, com segundas intenções, pelo contrário, vemos alguém inseguro e inocente, e pela razão da timidez, demostrava uma pessoa bastante frágil, seja emocional ou física.
A uma mudança radical no comportamento do personagem do começo até o final, e não vejo isso como uma "encenação" dele, como se Roj já tivesse essa intenção desde o momento que se encontrou com Aon, mas sim um acúmulo de emoções em seu interior.
Roj nunca havia tido um contato tão próximo com uma mulher, sua vida era morar de favor, não tinha expectativas de um futuro. O filme, apesar de não dar explicações explícitas, ele entrega muitas pistas sobre a personalidade dos personagens.
Logo no início, depois do evento da estação de trem, é mostrado Roj fumando com alguns colegas em um prédio, e ele fica espiando um casal namorando, mostrando seu desejo de ter aquela experiência, tendo obviamente o recente encontro com Aon o nascer de sua fantasia.
Ao encontrar Aon, se criou dentro dele um sentimento que até então era estranho, que não havia ainda experimentado, uma paixão, uma paixão que não soube controlar, vejo nele desde o princípio boas intenções com ela, mas isso foi se tornando insuportável para ele, não soube conter o que sentia, era intenso, e no desespero, não apenas de querer demonstrar ser uma boa pessoa para Aon, mas também da expectativa de finalmente estar tendo a oportunidade de ter uma mulher tão perto, próxima a ele. Todo esses sentimentos explodiram por dentro, e no desespero incontrolável, abusou de Aon.
A partir desse momento, após o ato ser feito, Roj se transformou por completo, é como um primeiro roubo, na primeira vez você fica inseguro, depois que é feito, o próximo roubo se torna fácil, a experiência da primeira vez, seja qual for, alimenta seu desejo de fazer cada vez mais.
Por isso no final vemos uma postura totalmente diferente de Roj, caminhando confiante em direção ao escritório para se encontrar com Aon.

As semelhantes entre Kamchanod e Kairo
Ao assistir ao trailer, logo me veio a memória um outro filme de terror chamado Kairo (2001), dirigido por Kiyoshi Kurosawa.
Apesar das histórias serem diferentes, havia alguns elementos que se assemelhavam, principalmente em sua atmosfera solitária.
Assim como Kamchanod, Kairo possui uma ambientação vazia, fria, lugares abandonados, onde refletem o interior depressivo dos personagens.
Um dos principais responsáveis para que este filme pareça bastante assustador e pavoroso é o diretor de arte, Pairote Siriwat, ele mencionou sobre seu trabalho nesta história que: "O diretor disse que queria que o tom do filme parecesse um filme noir. A atmosfera deve ser solitária, imersa e com chuvas. Para fazer as pessoas se sentirem sozinhas e assustadas".

Kairo, filme de 2001, fala sobre fantasmas que aparecem em vídeos na internet e pedem por ajuda, após o contato com esses vídeos, as pessoas começam a ter visões das pessoas mortas, e cada vez que os encontros vão ficando mais frequentes, mais os personagens vão ficando depressivos, até cometerem suicídio.
Todo o filme é centrado nos personagens, as assombrações são apenas um meio para tratar o verdadeiro foco do filme, que é a solido.
Esse contato com as assombrações, e como isso vai enlouquecendo psicologicamente os personagens, está presente também em Kamchanod, os jornalistas Ji e Pun que ajudam Yut na investigação do filme, começam a perder a sanidade após os encontros sobrenaturais, Pun enlouquece, fica perturbada sem saber o que fazer para tudo aquilo parar, não tem paz, as visões se tornam cada vez mais constantes, e Ji vendo o desespero de sua esposa, não encontrando outra alternativa, mata Pun para acabar com seu sofrimento e em seguida comete suicídio.
Todas as pessoas que tem o contato com esse filme, assim como acontece no contato com os vídeos em Kairo, todos eles acabam com um final trágico, seja a morte ou a loucura.

Ambos os filmes falam a respeito de haver um portal que liga o mundo dos vivos e dos mortos, que tanto um quanto o outro são reais. Em Kamchanod acontece pela exibição do filme, em Kairo é através dos vídeos de pessoas mortas.
O jovem Yut faz a seguinte pergunta: "Existe uma sobreposição entre este mundo e o próximo?"
Uma parte interessante em Kanchanod, é quando Ji e Pun descobrem que o misterioso filme foi exibido em um templo antes de ser rodado na floresta.
Partindo para esse templo, os dois encontram um solitário monge, e ao fazerem perguntas sobre o filme, o monge alerta: "As vezes, permanecer em nosso próprio mundo, sem atravessar para outros mundos, é a melhor coisa a fazer".

Mas apesar dos perigos que esse outro mundo apresenta, a maior ameaça de todos esses personagens está em seus próprios mundos, o mundo interior, antes mesmo de serem assombrados por essa desconhecida dimensão, eles já eram assombrados por si mesmos.
Aon não precisou do contato com os espíritos para alimentar sua vontade de morrer, a depressão sempre esteve em seu coração. Ela é assombrada não apenas pelo outro mundo, mas pelo mundo real, que não é um lugar tão feliz e seguro
Assim como acontece em Kairo, as assombrações são apenas um meio para que se intensifique o sofrimento que já existia nos personagens.


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